Capítulo 6

Desviei o olhar do Padre Dominic para o fantasma da garo ta e voltei a
olhar para ele. Finalmente consegui balbuciar:
- O senhor consegue vê-la?
Ele fez que sim.
- Sim. Quando sua mãe me falou de você e dos seus... problemas no
colégio, eu desconfiei que você podia ser uma das nossas, Suzannah. Mas
não tinha certeza, naturalmente, e por isto nada disse. Muito embora o
nome Simon, como deve saber, venha da palavra hebraica que quer dizer
"ouvinte atento", algo que você naturalmente deve ser também, como
mediadora...
Eu mal conseguia ouvi-lo. Ainda precisava me acostumar ao fato de
finalmente ter encontrado outro mediador, depois de todos aqueles anos.


- Então é por isto que não há espíritos de indígenas por aqui! - disse eu,
praticamente gritando. - O senhor cuidou deles. Minha nossa, eu estava
tentando imaginar o que havia acontecido com todos eles. Esperava
encontrar centenas...
Padre Dominic abaixou a cabeça modestamente e disse:
- Bem, não eram centenas, exatamente, mas quando cheguei aqui havia
mesmo uma boa quantidade. Mas não era nada, no fundo. Apenas cumpri o
meu dever, fazendo uso do dom celestial que recebi de Deus.
Eu fiz cara de espanto. É isto que permite conseguir essas coisas?, pensei.
- Mas é claro que se trata de um dom que recebemos de Deus.
Padre Dominic me olhava com aquele tipo de piedade que os fiéis sempre
demonstram conosco, pobres e patéticas criaturas cheias de dúvidas.
- De onde mais você acha que poderia vir?
- Não sei. De certa forma eu sempre quis ter uma conversa com o
responsável, entende? Pois se pudesse escolher eu preferia de longe não ter
sido abençoada com este dom.
Padre Dominic pareceu surpreso:
- Mas por quê, Suzannah?
- Só serve para me criar problemas. O senhor tem idéia de quantas horas já
passei em consultórios de psiquiatras? Minha mãe está convencida de que
sou completamente esquizofrênica.
- Sim - concordou padre Dominic, pensativo. - Compreendo que um dom
milagroso como o seu possa ser considerado por uma pessoa leiga como...
digamos, incomum.
- Incomum? O senhor está brincando comigo?
- Reconheço que aqui na missão eu po sso contar com uma proteção -
admitiu padre Dominic. - Nunca me ocorreu que deve ser extremamente
difícil para vocês que estão... bem, na linha de frente, por assim dizer, sem
um efetivo apoio eclesiástico...
- Vocês? - fiz eu, levantando as sobrancelhas. - O senhor está dizendo que
não somos só nós dois?
Ele pareceu surpreso.
- Bem, eu presumi... certamente não somos só nós dois. Não é possível que
sejamos os últimos. Não, não, certamente há outros.
- Desculpe-me - interrompeu o fantasma, olhando -nos com sarcasmo. -
Será que se importavam de me dizer o que está acontecendo? Quem é esta
perua? É ela que vai tomar o meu lugar?
- Ei! Veja como fala! - retruquei, fulminando-a com os olhos. - Você está
na presença de um padre!...
Ela sorriu com escárnio para mim:
- É mesmo, é? E eu não sei que ele é um padre? Ele passou a semana
inteira tentando se livrar de mim.
Eu olhei para o padre Dominic com ar de surpresa, e ele disse,
embaraçado:
- Bem, é que a Heather está sendo um tanto obstinada...
- Se está pensando - interferiu Heather com sua vozinha ranheta - que eu
vou ficar aqui de braços cruzados deixando que você entregue o meu
armário a esta perua...
- Se me chamar de vagabunda mais uma vez, coisinha, vai passar o resto da
eternidade dentro deste seu armário - avisei.
Heather me olhou sem a mais leve sombra de medo.
- Perua - disse então, esticando bem a palavra.
Eu a acertei tão rápido que ela nem viu o meu punho chegando. Foi um
murro tão forte que ela saiu rolando pelos armários enfileirados, fazendo
mossa nas portas. Foi cair de cara lá adiante no piso de pedras, mas um
segundo depois já estava de pé novamente. Eu esperava que ela revidasse,
mas em vez disso Heather deu um gemido e saiu correndo pelo corredor.
"Não é nada", falei, mais para mim mesma.
Claro que ela voltaria. Eu apenas a havia assustado. Ela voltaria. Mas
provavelmente quando voltasse a vê -la ela teria de adotar uma atitude
ligeiramente diferente.
Livre da Heather, eu soprei as juntas dos dedos. Os fantasmas podem
ter maxilares bem resistentes.
- Então, padre, o que estava mesmo dizendo? - perguntei.
Ainda com os olhos no ponto em que Heather estivera antes, padre
Dominic observou, algo secamente para um padre:
- Estão ensinado técnicas de mediação bem interessantes hoje em dia...
- Ora - respondi -, ninguém pode me xingar assim e ficar por isso
mesmo. Não ligo nem um pouco para o quanto pode ter sofrido na vida
anterior.
- Acho que precisamos conversar sobre certas coisas - disse padre
Dominic, pensativo.
Levou então um dedo aos lábios. Uma porta abriu-se ao lado e um homem
corpulento, o rosto coberto por uma barba cerrada, olhou na direção da
galeria, pois tinha ouvido o impacto do corpo astral de Heather nos
armários de metal - engraçado como podem ser pesados.
- Está tudo bem, Dom? - perguntou, ao ver padre Dominic.
- Tudo bem, Carl. Tudo bem. E veja o que eu trouxe para você - respondeu
padre Dominic, pondo a mão no meu ombro. - Sua nova aluna, Suzannah
Simon. Suzannah, este é o seu professor, Carl Walden.
Eu estendi a mão com que acabara de esmurrar Heather:
- Como vai, sr. Walden?
- Vou bem, srt. Simon, muito bem.
Minha mão desapareceu dentro da manopla do professor Walden. Ele não
parecia muito um professor. Parecia mais um lenhador. Precisou até se
apertar contra a parede para permitir que e u me esgueirasse para dentro da
aula.
- Que bom que você vai ficar conosco - disse ele com seu zoreirão
ressonante. - Obrigado por acompanhá-la, Dom.
- Não há de quê - respondeu padre Dominic. - Tivemos aqui um pequeno
problema com o armário dela. Você pro vavelmente ouviu. Não quis
atrapalhá-lo. Vou pedir que o zelador dê uma olhada. Depois, Suzannha,
espero-a de volta no meu gabinete às três horas para... para acabar de
preencher aqueles formulários.
Eu sorri carinhosamente para ele:
- Não vai ser possível, padre. Minha carona sai às três...
Padre Dominic fechou a cara para mim:
- Neste caso, vou mandar um passe para você. Por volta de duas horas.
- OK - respondi, dando té-loguinho com os dedos para ele. - Tchau.
Tenho a impressão de que na Costa Oeste não se dá té-loguinho para o
diretor nem se diz tchau para ele, pois quando me virei na direção dos
meus novos colegas de turma, estavam todos me olhando de boca aberta.
Talvez fosse a minha roupa. Eu estava usando um pouco mais de
preto que de costume, por causa da tensão nervosa. Quando estiver em
dúvida, costumo dizer, use preto. Com o preto nunca tem erro.
Ou talvez tenha. Pois ao dar com todas aquelas caras de espanto não vi
uma única roupa preta. Muito branco, alguns marrons e uma quantidade de
cáquis, mas nenhum preto.
Gulp...
O professor Walden não pareceu perceber o meu mal -estar. Apresentou-me
à turma e me convidou a explicar -lhes de onde vinha. Foi o que eu fiz, e
todo mundo ficou me olhando com cara de tacho. Comecei a sentir um
suorzinho escorrendo pela nuca. Tenho de reconhecer que às vezes prefiro
a companhia dos mortos à companhia dos colegas. Gente de 16 anos pode
ser mesmo assustadora.
Mas o professor era um bom sujeito. Só me deixou ali debaixo daqueles
olhares todos durante um minuto, depois m andou-me sentar.
Parece algo simples, certo? Simplesmente tome o seu lugar. Mas o
problema é que havia dois assentos. Um deles era ao lado de uma garota
bronzeada linda, com uma espessa e encaracolada cabeleira de um louro
queimado. O outro ficava bem lá n o fundo, atrás de uma garota de cabelo
tão branco e pele tão cor-de-rosa que só podia ser albina.
Isto mesmo, não estou brincando. Uma albina.
Minha decisão foi influenciada por dois fatores. O primeiro foi que, ao ver
o assento lá no fundo, percebi que as janelas, que ficavam logo atrás dele,
davam para ver o estacionamento do colégio.
Tudo bem, não chegava a ser uma vista maravilhosa, mas depois do
estacionamento tinha o mar.
Não estou brincando. Aquele colégio, meu novo colégio, tinha uma vista
do Pacífico ainda melhor que a do meu quarto, pois ficava muito mais
perto da praia. Das janelas da minha sala de aula era possível ver
perfeitamente as ondas. Eu queria me sentar o mais perto possível da
janela.
O segundo motivo para me sentar ali era simples: não queria ficar do lado
da garota bronzeada e fazer a garota albina pensar que não queria ficar
perto de alguém com aparência tão esquisita...
Bobagem, não é mesmo? Como se ela estivesse dando alguma
importância para o que eu fazia. Mas eu nem hesitei. Vi o mar, vi a garota
albina e lá fui eu.
Assim que me sentei, claro, uma outra garota deu uma risadinha e sussurou
baixinho, mas de forma perfeitamente audível:
- Caramba, foi sentar logo perto da esquisita!...
Eu olhei para ela. Tinha uma cabeleira impecável e olhos impecavelmente
pintados. E disse, sem se preocupar em falar baixinho:
- Desculpe, você sofre de Tourette?
O professor voltara-se para escrever alguma coisa no quadro -negro mas se
deteve ao ouvir minha voz. Todos se voltaram na minha direção, inclus ive
a garota que tinha feito o comentário.
- O quê? - fez ela, apertando os olhos.
- Síndrome de Tourette - continuei. - É uma doença neurológica que faz as
pessoas dizerem coisas que não querem dizer. Você tem isso?
O rosto da guria começara a ficar verme lho:
- Não.
- Ah!... Então estava mesmo sendo grosseira de propósito...
- Eu não estava chamando você de esquisita - justificou-se rapidamente.
- Sei perfeitamente - prossegui. - Por isto é que depois da aula vou quebrar
apenas um dedo seu, e não todos ele s.
Ela se virou rapidinho para frente. E eu sentei no meu lugar. Não sei o que
todo mundo começou a cochichar depois disso, mas pude ver que a cabeça
da albina - perfeitamente visível por baixo do branco dos seus cabelos -
tornara-se roxa, tão sem graça ela havia ficado. O professor teve que
mandar que todos se comportassem, e como foi ignorado deu um murro na
mesa e foi avisando que tínhamos tanta coisa a dizer, poderíamos dizer
numa redação de mil palavras sobre a batalha de Bladensburgo na guerra
de 1812, espaço duplo, na mesa dele amanhã cedinho.
Puxa vida. Ainda bem que eu não estava no colégio para fazer amigos.

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