Capítulo 1

Disseram que lá havia palmeiras.
Eu não acreditei, mas foi o que me disseram. Disseram que já do
avião eu poderia vê-las.
Eu sei perfeitamente que o sul da Califórnia há palmeiras. Não custa
lembrar que não sou uma pateta completa. Eu assistia Barrados no baile e
tudo. Mas era para o norte da Califórnia. Pois se a minha mãe tinha dito
para eu não dar os meus suéteres...
- Não, senhora - disse ela.- Você precisa deles. Das suas capas
também. Lá pode fazer frio. Talvez não como em Nova York, mas bem
friozinho.

Por isso é que eu estava usando minha jaqueta de couro preto no
avião. Provavelmente poderia tê -la mandado com o resto da minha
mudança, mas acho que eu me sentia melhor com ela no corpo.
De modo que lá estava eu naquele avião, com uma jaqueta de
motoqueira, vendo as palmeiras pela janela ao aterrissar. E pensei: genial.
Jaqueta de couro e palmeiras. Não podia estar acertando mais, exatamente
como achava que ia mesmo...
...Para não dizer o contrário.
Minha mãe não gosta muito da minha jaqueta de couro, mas eu juro
que não a vesti para deixá-la furiosa, ou algo assim. Não fiquei aborrecida
com o fato de ela ter decidido se casar com um sujeito que vive a 4.800
quilômetros de distância, me obrigando a sair do colégio no meio do
segundo ano; a abandonar a melhor - no fundo, a única- amiga que tive
desde o jardim de infância; a deixar a cidade onde vivi todos os meus 16
anos.
Não mesmo. Não fiquei nada aborrecida.
Pois o fato é que eu realmente gosto do Andy, meu novo padrasto.
Ele é bom para a minha mãe. Ele a deixa feliz. E é superbonzinho comigo.
Essa história de mudar para a Califórnia é que me deixou meio fora de
esquadro.
E acho até que ainda nem falei dos três filhos de Andy.
Estavam todos lá para me recebe r quando desci do avião. Minha
mãe, Andy e os três filhos dele. Soneca, Dunga e Mestre. É como eu os
chamo. São os meus novos meios -irmãos.
- Suze!
Mesmo se eu não tivesse ouvido minha mãe berrando meu nome
quando passei pelo portão, não tinha como deixar de vê-los - minha nova
família. Andy fazia os dois menores segurarem aquele enorme cartaz
dizendo “Seja bem-vinda Suzannah!”. Todos os passageiros que saíam do
avião passavam por ali e ficavam dizendo ”Olha só que gracinha!” e
sorrindo para mim com aquele olhar enjoativo.
É isso aí. Não podia mesmo estar acertando mais. Estou acertando
horrores.
- Tudo bem - fui dizendo, enquanto me aproximava depressinha da minha
nova família.
- Agora podem abaixar isso aí.
Mas a minha mãe estava preocupada demais em me a braçar para prestar
atenção. Ficava me dizendo: “Minha Suzinha!” Eu odeio quando alguém
que não seja minha mãe me chama de Suzinha, de modo que fui logo
tratando de fulminar os garotos com um olhar bem malvado, para que não
alimentassem qualquer esperança. Eles ficavam só rindo para mim por
cima daquele cartaz imbecil, Dunga por ser boboca demais, Mestre
porque... bem, ele até que podia estar contente mesmo por me ver. O
Mestre tem dessas esquisitices. Soneca, o mais velho, ficava lá parado,
com ar de... de sono, ora.
- Como foi a viagem, guria?
Andy tirou a mochila do meu ombro e botou no dele. Visivelmente,
estranhou o peso:
- Uau! O que é que você está trazendo aqui? Não sabia que é considerado
crime contrabandear hidrantes de Nova York para outros estado s?
Eu sorri para ele. Andy é aquele tipo de pateta grandalhão, mas é um pateta
legal. Não podia ter a menor idéia do que é crime no estado de Nova York,
pois só esteve lá umas cinco vezes. E por sinal foi suficiente para
convencer minha mãe a se casar com ele.
- Não é um hidrante – eu disse. – É um paquímetro. E ainda tenho mais
quatro malas.
- Quatro? – Andy fingiu que estava espantado. – Você por acaso pensa que
está fazendo uma mudança?
Não sei se já disse que o Andy se acha o maior comediante? Só que nã o é.
Ele é carpinteiro.
- Suze – disse Mestre, todo entusiasmado. – Você reparou que na
aterrissagem a cauda do avião sacudiu um pouco? Foi uma corrente de ar
ascendente. Acontece quando uma massa de ar que se move em grande
velocidade vai de encontro a uma contracorrente de vento com velocidade
igual ou maior.
Mestre, o filho menor do Andy, tem 12 anos, mas parece que tem uns 40.
Na festa de casamento, ficou quase o tempo todo me falando de mutilação
de cabeças de gado importadas, e que a tal da Área 51 n ão passa de uma
grande farsa do governo americano, que não quer que a gente saiba que
“não estamos sós” neste universo...
- Puxa, Suzinha – minha mãe repetia. – Estou tão feliz por você ter vindo.
Você vai adorar a casa. No início não parecia que era a nos sa casa, mas
agora que você está aqui... E espere só até ver o seu quarto. Andy deixou -o
uma gracinha...
Antes de se casarem, Andy e minha mãe passaram semanas
procurando uma casa que tivesse pelo menos um quarto para cada filho.
Finalmente se decidiram por aquela enorme casa na colina de Carmel, que
só puderam comprar porque estava em um estado lamentável, e a firma de
construção para a qual o Andy costuma trabalhar a reformou por um preço
supercamarada. Há dias minha mãe vinha falando sobre o meu quarto, que
ela jura ser o mais bonito da casa.
- Que vista! – dizia ela a toda hora. – A sacada do seu quarto dá pra ver o
mar! Puxa, Suze, você vai adorar.
Eu sabia mesmo que ia adorar. Exatamente como adoraria trocar o bagel de
Nova York por brotos de alfafa, o metrô pelas pranchas de surfe e tudo o
mais.
Não sei bem como nem por que, mas Dunga conseguiu abrir aquela boca e
perguntou com aquela voz abobalhada:
- Gostou do cartaz?
Nem consigo acreditar que ele tem a mesma idade que eu. Mas não
dava mesmo para esperar outra coisa: ele está na equipe de luta livre. A
única coisa em que consegue pensar, pelo que pude perceber quando tive
que ficar sentada a seu lado na festa de casamento (fiquei sentada entre ele
e o Mestre, dá para sentir como a coisa fluiu), é em chaves-de-pescoço e
shakes de proteína para ganhar massa muscular.
- É mesmo, grande cartaz – respondi, arrancando-o das suas manoplas e
virando-o de cabeça para baixo para ninguém mais ler os dizeres.
– Podemos ir agora? Quero pegar minhas malas antes qu e alguém
tenha a mesma idéia.
- Claro, claro – disse minha mamãe, dando-me um último abraço.
– Puxa, estou tão contente de te ver! Você está tão bem...
Foi então que ela disse, embora estivesse na cara que não queria dizer, mas
disse mesmo assim, baixinho, para ninguém mais ouvir:
- Pensei que já tivesse falado com você sobre a jaqueta, Suze. Eu achei que
você tinha jogado esses jeans fora.
Eu estava usando meus jeans mais velhos, os que são furados nos joelhos.
Combinação dos jeans e botas com minha jaque ta preta de motoqueira e
minha mochila das forças armadas me faziam parecer uma adolescente
rebelde fugindo de casa num filme de TV.
Mas, puxa, para atravessar o país num avião durante oito horas, a gente
tem mais é que se sentir confortável.
Foi o que eu disse, e minha mãe revirou os olhinhos e deixou pra lá. É o
lado bom da minha mãe. Ela não fica insistindo, como outras mães.
Soneca, Dunga e Mestre não tem nem idéia de como são sortudos.
- Tudo bem – concordou ela. – Vamos pegar sua bagagem.
E levantando novamente a voz, chamou:
- Vamos Jake. Vamos pegar as coisas da Suze.
Ela precisou chamar Soneca pelo nome, pois ele parecia que já estava
dormindo em pé. Uma vez perguntei à minha mãe se o Jake, que já está
adiantado no colegial, sofre de narcolepsia ou é viciado em alguma droga,
e ela estranhou que eu estivesse dizendo aquilo. É que o cara fica lá o
tempo todo piscando sem falar com ninguém.
Espera aí, não é verdade. Uma vez ele realmente me disse uma coisa.
Perguntou se eu fazia parte de alguma gangue. Foi no casamento, quando
me pegou do lado de fora fumando um cigarro, com minha jaqueta de
couro por cima do meu vestido de dama de honra.
Vê se me esquece, tá bem? Foi o primeiro e único cigarro que eu jamais
fumei. O estresse era muito grande. Eu estava preocupada como o
casamento da minha mãe, ela ia se mudar para a Califórnia e podia me
esquecer. Juro que nunca mais fumei nenhum cigarro.
E não me interpretem mal quando eu falo do Jake. Com seu metro e oitenta
e tal, a mesma cabeleira loura rebelde e os mesmos olhos azuis e brilhantes
do pai, ele é o que a minha melhor amiga, Gina, chamaria de um pedaço.
Apenas, não é exatamente a mente mais brilhante do mundo, se é que
vocês me entendem.
O Mestre continuava falando da velocidade do vento. Estava explic ando
qual a velocidade necessária para que o avião possa romper a força
gravitacional da Terra. É conhecida como velocidade de decolagem. Decidi
então que poderia ser útil ter o Mestre por perto para os deveres de casa,
mesmo eu sendo três períodos mais ad iantada que ele.
Enquanto o Mestre falava, eu ia olhando em volta. Era a primeira vez que
eu ia à Califórnia, e vou dizer uma coisa: embora ainda estivéssemos no
aeroporto – e não era qualquer um, mas o Aeroporto internacional de San
José – já dava para sentir que não estávamos mais em Nova York. Quer
dizer, para começar, era tudo limpo. Nada de sujeira, nem de bagunça, nem
pichações. O saguão era todo em tons pastéis, e qualquer um sabe que a
sujeira aparece mais em cores claras. Por que você acha que os n ovaiorquinos
se vestem de preto o tempo todo? Nada a ver com estar na onda.
Não mesmo. É só para não precisar botar as roupas pra lavar toda vez que
saímos com elas.
Mas este problema não precisa existir na ensolarada Califórnia. Pelo
que eu podia perceber, a onda eram os tons pastéis. Passou por nós uma
mulher vestindo calça colante de ginástica cor -de-rosa e top branco. E só.
Se aquilo era vestido a caráter na Califórnia, dava para ver que eu ia passar
pelo maior choque cultural.
E sabe o que mais eu achei estranho? Ninguém estava brigando. Havia filas
de passageiros aqui e ali, mas eles não estavam levantando a voz com os
balconistas. Em Nova York, todo cliente está sempre brigando com os
atendentes, não importa onde: no aeroporto, na Bloomingdales, na
carrocinha de cachorro-quente, em qualquer lugar.
Aqui não. Estava todo mundo perfeitamente calmo.
E acho que eu sabia por quê. Simplesmente não me parecia que houvesse
qualquer motivo para se irritar. Lá fora, o sol se derramava nas palmeiras
que eu havia visto no céu. No estacionamento havia gaivotas ciscando –
nada de pombos, gaivotas mesmo, grandes gaivotas brancas e cinzentas. E
quando fomos apanhar minha bagagem, ninguém se preocupou se os
adesivos nelas combinavam com os meus canhotos. Nada disso. Tod o
mundo só ficava dizendo “Até logo! Tenham um bom dia!”.
Completamente irreal.
Antes de eu viajar, a Gina (ela era minha melhor amiga no Brooklyn; bem,
na verdade, a minha única amiga) tinha me dito que eu ia ver que ter três
meios-irmãos tinha lá suas vantagens. E ela sabia do que estava falando,
pois tinha quatro – não meios-irmãos, mas irmãos de verdade. Seja como
for, não acreditei nela, assim como não havia acreditado nas pessoas que
falavam de palmeiras. Mas quando o Soneca pegou duas malas minhas e o
Dunga pegou as outras duas e eu não precisei carregar absolutamente nada,
pois o Andy já estava com a minha mochila de mão, finalmente eu entendi
do que ela estava falando: os irmãos podem ter sua utilidade. Podem
carregar o que é pesado mesmo, como se n ão fosse nada.
Afinal, eu tinha feito minhas malas, e sabia o que havia nelas. Não
estavam nada leves. Mas soneca e Dunga iam andando assim tipo, sem
problema, vamos nessa.
De posse da minha bagagem, fomos para o estacionamento. Quando as
portas automáticas se abriram, todo mundo – inclusive minha mãe – levou
as mãos ao bolso para botar os óculos escuros. Aparentemente estavam
todos sabendo alguma coisa que eu não sabia. Mas bastou chegar à calçada
para entender o que era.
Aqui faz sol!
E não é só que faz sol – é uma luminosidade incrível, tão forte e colorida
que os olhos doem. Eu também tinha os meus óculos escuros; estavam em
algum lugar, mas como estava fazendo uns cinco graus caindo chuva de
granizo quando eu saí de Nova York, nem me passou pela cabeça deixá-los
na mão. Quando minha mãe me disse que nós íamos nos mudar – ela e
Andy decidiram que era mais fácil ela se mudar, pois tinha só uma filha e
trabalhava como repórter de TV, do que ele, que tinha três filhos e um
negócio próprio - , ela me explicou que eu ia adorar o norte da Califórnia.
- É lá que foram feitos todos aqueles filmes da Goldie Hawn e do Chevy
Chase! – disse ela
Eu gosto da Goldie Hawn e do Chevy Chase, mas não sabia que eles
tinham feito algum filme juntos.
- Lá é que se passam as histórias de todos aqueles romances do Steinceck
que você leu na escola – explicou. – Você lembra, o pônei vermelho...
Não fiquei tão impressionada assim. Do pônei vermelho, só me lembrava
que não havia meninas na história, embora houvesse um bocado de colin as.
E agora ali no estacionamento, passando os olhos pelas colinas ao redor do
Aeroporto Internacional de San José, eu podia ver que havia mesmo muitas
colinas, e que a relva nelas estava ressecada e amarelada.
Mas, espalhadas pelas colinas, havia umas árv ores diferentes de todas que
eu já tinha visto. Eram achatadas no alto, como se um punho gigantesco
tivesse vindo do céu e dado um murro. Mais tarde eu ficaria sabendo que
eram ciprestes.
E pelo estacionamento todo, que evidentemente tinha um sistema de
irrigação, havia arbustos enormes com flores vermelhas gigantescas, quase
sempre ao redor das palmeiras incrivelmente altas e grossas. Depois,
olhando melhor as flores, eu descobria que eram hibiscos. E os estranhos
besouros que ficavam pairando em volta, com um zumbido, não eram
besouros coisa nenhuma, mas beija -flores.
-Claro – disse minha mãe quando eu observei isto. – Eles estão em toda
parte. Lá em casa nós temos bebedouros para eles. Se quiser você pode
pendurar um na sua janela também.
Beija-flores bebendo agüinha na nossa janela? Lá no Brooklyn os únicos
pássaros que vinham até minha janela eram pombos. E minha mãe não
chegava exatamente a me estimular a alimentá -los.
Meu momento de alegria com os beija -flores foi interrompido quando o
Dunga de repente anunciou que ia dirigir, e se encaminhou para o assento
do motorista do enorme utilitário de que no aproximávamos.
- Eu vou dirigir – disse Andy com firmeza.
- Puxa, pai – fez o Dunga. – Como é que eu vou conseguir minha carteira
se você nunca me deixa praticar?
-Você pode praticar no Rambler – respondeu o Andy, abrindo a mala do
Land Rover e começando a acomodar minha bagagem. – Você também
Suze.
Fiquei espantada.
- Eu também o quê?
- Você pode praticar direção no Rambler, mas só tendo ao lado alguém que
tenha carteira de motorista – respondeu ele, sacudindo o dedo indicador na
minha direção.
Eu pisquei pra a ele.
- Não sei dirigir – disse.
Dunga soltou uma gargalhada que parecia um relincho.
- Você não sabe dirigir? – e com o cotovelo ele cutucou o Soneca , que
estava recostado na lateral do carro, com o rosto voltado para o Sol. – Olha
aí, Jake, ela não sabe dirigir!
- Não é tão incomum assim que um nova -iorquino não tenha carteira
de motorista, Brad – disse Mestre. – Você não sabe que Nova York tem
tráfego mais pesado de todo o país, com uma população de mais de 13
milhões de pessoas num período de 6.400 quilômetros que vai de
Connecticut, passando por Long Island? E que sua ampla malha de metrô,
ferrovias e ônibus atende a um bilhão e setecentos milhões d e usuários
anualmente?
Todo mundo ficou olhando para o Mestre. Até que minha mãe conseguiu
dizer, modestamente:
- Eu nunca ando de carro na cidade.
Andy fechou a porta traseira do Land Rover.
- Não se preocupe, Suze – disse ele. – Vamos te matricular sem demora
numa auto-escola. - - Num piscar de olhos você vai se equiparar ao Brad.
Eu olhei para Dunga. Jamais teria imaginado que alguém pudesse dizer que
eu ainda precisava me equiparar ao Brad em alguma coisa.
Mas dava para ver que muitas surpresas ainda me esperavam. As palmeiras
tinham sido apenas o começo. No trajeto para casa, que ficava a uma hora
do aeroporto – e uma hora que não se passava nada rápido, espremida que
eu estava entre o Dunga e o Soneca, com Mestre empoleirado em cima da
minha bagagem lá atrás e sem parar de discorrer sobre as maravilhas do
departamento de trânsito da cidade de Nova York, - eu comecei a me dar
conta de que as coisas seriam diferentes do que eu imaginara, e com
certeza diferentes de tudo a que eu estava acostumada.
E não apenas porque eu passaria a viver do outro lado do continente. Não
só porque, para qualquer lado que eu olhasse, via coisas que nunca havia
visto em Nova York: quiosques de beira de estrada vendendo alcachofras e
romãs a um dólar a dúzia; quilômetros e quil ômetros de vinhedos se
enroscando infundávelmente em caramanchões; plantações de limão e
abacate; toda uma vegetação de um verde deslumbrante que eu nem era
capaz de identificar. E por cima de tudo aquilo, um céu tão azul, tão vasto,
que o enorme balão de gás que ia passando lá adiante parecia incrivelmente
minúsculo – como um botão no fundo de uma piscina olímpica.
E além do mais havia o mar, que aparecia tão de repente diante dos
nossos olhos que de início eu não reconheci, achando que era apenas mais
uma plantação. Até que eu notei que aquela plantação estava brilhando,
refletindo o sol e me enviando pequenas mensagens de SOS em código
Morse. A luz era tão resplandecente que ficava difícil olhar sem óculos
escuros. Mas lá estava ele, o Oceano Pacífico... enorme, quase tão vasto
quanto uma coisa viva e pulsante se projetando contra uma tira de praia em
forma de vírgula.
Como eu era de Nova York, só muito raramente tinha visto o mar, pelo
menos com praia. Fiquei mesmo de boca aberta quando o vi, era mais fo rte
do que eu. E quando meu queixo caiu todo mundo parou de falar – exceto
Soneca, claro, que estava dormindo.
- Que foi? – perguntou minha mãe, espantada. – Que aconteceu?
- Nada – respondi. Eu estava sem graça. Claro que todos ali estavam
acostumados a ver o mar. Iam pensar que eu era uma aberração, ficando
tão impressionada com aquilo.
– Nada não, é só o mar.
- Ah, sim – disse minha mãe. – É mesmo, não é lindo?
Aí foi a vez do Dunga:
-Ondas muito maneiras. Vou à praia antes do jantar.
-Só depois de terminar aquele trabalho – cortou o pai.
-Poxa, paiêee!...
Foi a deixa para minha mãe começar a fazer uma longa e detalhada
descrição do colégio para o qual eu ia, o mesmo que era freqüentado por
Soneca, Dunga e Mestre. O colégio, batizado com o nome de Junipe ro
Serra, um espanhol que chegou no século XVIII e obrigou os indígenas
americanos que já viviam na região a trocar sua religião pelo cristianismo,
era na realidade um gigantesca missão construída com tijolos crus, que
todo ano atraía vinte mil turistas ou coisa parecida.
Na realidade eu não estava ouvindo o que minha mãe dizia. Meu
interesse pela escola sempre foi mais ou menos igual a zero. O único
motivo pelo qual eu não pudera mudar -me para cá antes do Natal é que não
havia vaga para mim no Colégio da Missão; tive então de esperar o
semestre seguinte para aparecer alguma coisa. Mas não me importei –
acabei morando com minha avó, além de ser uma excelente advogada
criminal, é uma cozinheira de mão cheia.
Eu ainda estava me recuperando da impressão causad a pelo mar, que havia
desaparecido por trás das colinas. Eu ficava esticando o pescoço, na
esperança de dar mais uma olhadela, e de repente me ocorreu... E eu disse:
- Espera aí. Quando esse colégio foi construído?
- No século XVIII – respondeu Mestre. – As missões, implantadas pelos
franciscanos de acordo com as normas da Igreja Católica e do governo
espanhol, foram criadas não só para cristianizar os indígenas americanos
mas também para torná-los comerciantes bem preparados no contexto da
sociedade espanhola. Inicialmente, a missão servia como...
- Século XVIII? – insisti, inclinando-me para a frente. Eu estava espremida
entre o Soneca (cuja cabeça já estava repousando no meu ombro, de tal
modo que eu era capaz de dizer, só respirar, que ele usava xampu Fi nesse)
e Dunga. A Gina não tinha me dito nada sobre o espaço que os garotos são
capazes de ocupar, e que não é pouca coisa não, quando eles passam do
metro e oitenta de altura e podem pesar algo em torno de 90 quilos.
– Século XVIII?
Minha mãe deve ter percebido o pânico na minha voz, pois virou -se no
assento da frente e disse, com sua voz suave:
- Suze, nós já conversamos sobre isto. Eu te expliquei que no colégio
Robert Louis Stevenson a lista de espera é de um ano e você me disse que
não queria ir para um colégio só de menina, de modo que o Sagrado
Coração fica descartado e o Andy ficou sabendo de histórias terríveis de
drogas e violência nos colégios públicos aqui da região...
- Mas, século XVIII? – insisti, já sentindo meu coração bater forte,
como se estivesse correndo. – Isto quer dizer que ele tem trezentos anos!
- Não estou entendendo – disse o Andy.
Já estávamos atravessando a cidadezinha de Carmel -sobre-o-Mar, cheia de
chalés pitorescos – alguns deles com telhados de palha – e pequenos
restaurantes e galerias de arte cheios de charme. Andy tinha de dirigir com
cuidado, pois as ruas estavam cheias de carros com placas de outros
estados e não havia sinais luminosos, algo de que os moradores por algum
motivo se orgulhavam
- O que há de tão errado com o século XVIII? – ele quis saber.
Minha respondeu, sem a menor inflexão na voz – aquela voz que eu chamo
de voz de más notícias, a que ela usa na televisão para noticiar desastres de
avião e assassinatos de crianças:
- Suze nunca gostou muito de prédios ant igos.
- Ah – fez Andy. – Então é provável que ela não goste da casa.
Eu me agarrei no encosto de cabeça do assento dele.
-Por quê? – perguntei numa voz seca. – Por que não vou gostar da casa?
É claro que eu percebi o motivo assim que chegamos. A casa era e norme e
inacreditavelmente bonita, com direito a torrinhas de estilo vitoriano e uma
plataforma-mirante no telhado. Minha mãe mandara pintá -la de azul,
branco e creme, e ela era cercada de grandes pinheiros frondosos e arbustos
floridos por toda parte. Com três andares, toda construída em madeira e
não a terrível combinação de vidro e aço ou a terracota de que eram feitas
as casas ao redor, pode-se dizer que era a casa mais charmosa e de bom
gosto da vizinhança.
Mas eu não queria pisar lá dentro.
Quando concordei em me mudar para a Califórnia com minha mãe,
eu sabia que teria de enfrentar muitas mudanças. As alcachofras à beira da
estrada, as plantações de limão, o mar... nada disso tinha importância. No
fundo, a maior mudança seria ter de compartilhar minh a mãe com outras
pessoas. Desde que o meu pai morrera há dez anos, éramos só nós duas. E
eu tenho orgulho de reconhecer que gostava das coisas desse jeito. Na
realidade, se não fosse pelo fato de que o Andy tão evidentemente fazia a
minha mãe feliz, eu teria fincado pá e dito não à mudança.
Mas era impossível simplesmente olhar para os dois – Andy e minha mãe –
e não ver logo de cara que babavam completamente um pelo outro. E que
tipo de filha eu seria se dissesse “nem pensar”? De modo que eu aceitei o
Andy, aceitei seus três filhos e aceitei o fato de que teria de deixar para trás
tudo que eu tinha e amava – minha melhor amiga, minha avó, os bagels, o
bairro do SoHo – para dar à minha mãe a felicidade que ela merecia.
Mas eu ainda não tinha parado para pens ar realmente no fato de que, pela
primeira vez na minha vida, ia morar numa casa.
E não uma casa qualquer, e sim, como ia dizendo o Andy cheio de orgulho
enquanto tirava minha bagagem do carro e entregava aos filhos, um
casarão que havia funcionado como es talagem no século XIX. Construído
em 1849, ele aparentemente tinha uma péssima reputação na época. No
salão principal havia ocorrido tiroteios por causa de jogos de cartas e
mulheres. Ainda era possível ver os buracos das balas. Um deles, inclusive,
havia sido emoldurado pelo Andy. Ele confessava que era um pouco
mórbido, mas argumentavam que não deixava de ser interessante. E
apostava que estávamos morando na única casa da colina de Carmel que
tinha um buraco de bala feito no século XIX.
- Hummm, eu disse. E aposto que era verdade.
Enquanto subíamos os muitos degraus até a varanda da frente, minha
mãe ficava olhando para mim. Eu sabia que ela estava apreensiva com o
que eu ia pensar. E eu estava mesmo meio danada com ela por não ter me
avisado. Mas acho que posso entender por que ela não disse nada. Se ela
tivesse me dito que tinha comprado uma casa com mais de cem anos, eu
não teria mudado para lá. Teria ficado com a vovó até chegar a hora de
entrar na faculdade.
Pois o fato é que a minha mãe tem toda raz ão: eu não gosto de construções
antigas.
Embora desse para ver que em matéria de prédios antigos, aquele era
realmente especial... De pé na varanda, a gente podia ver toda Carmel lá
embaixo, a cidadezinha, o vale, a praia, o mar. Era uma vista sensacional, e
muita gente estaria disposta a pagar milhões para tê -la – e na verdade
pagava mesmo, a julgar pelo luxo das casas em volta; uma vista para
ninguém botar defeito.
Ainda assim, quando minha mãe me chamou para ver meu quarto, eu tremi
um pouco nas bases.
A casa era tão bonita por dentro, quanta por fora, toda alegre com seus
amarelos e azul e seus alaranjados brilhantes. Eu logo reconheci as coisas
da minha mãe, o que me fez sentir um pouco melhor. Lá estavam os livros
da minha mãe, nas prateleiras embutida s na saleta. Suas plantas, por cujo
transporte ela pagara tão caro, por não conseguir se separar delas, estavam
em toda parte, em tripés de madeira, penduradas em frente às janelas,
encarrapitadas no alto do corrimão da escada.
Mas também havia coisas que eu não estava reconhecendo: um belo de um
computador branco na escrivaninha que minha mãe costumava usar para
assinar cheques e pagar as contas; uma televisão de tela grande
absurdamente enfiada numa lareira de saleta, com fios ligando -a a uma
espécie de videogame; pranchas de surfe encostadas na parede ao lado da
porta que dava para a garagem; um enorme cachorro babão, que parecia
convencido de que eu trazia comida nos bolsos, onde não parava de enfiar
seu enorme focinho úmido.
Todas essas coisa pareciam estranhamente masculinas, objetos
estranhos no tipo de vida que eu e minha mãe tínhamos cultivado. Ia ser
necessário algum tempo para eu me acostumar a elas.
Meu quarto ficava no primeiro andar, bem em cima do telhado da varanda.
Durante todo o percurso do aeroporto minha mãe ficara falando agitada
sobre o assento que o Andy tinha instalado na janela de três fazes projetada
para fora, do tipo conhecido como bay window. A janela dava para a
mesma vista que a varanda, aquela paisagem impressionante que abarca va
toda a península. Era mesmo uma gracinha da parte deles me darem um
quarto tão bom, o quarto com a melhor vista da casa.
E quando eu vi a trabalheira que eles tiveram, para que eu me sentisse em
casa naquele quarto (ou pelo menos para que alguma garota
excessivamente feminina e fantasmagórica se sentisse em casa... não, eu...
Eu nunca tinha sido do tipo penteadeira -com-tampo-de-vidro-e-telefonecor-
de-rosa), quando vi que o Andy mandara botar papel de parede creme
com miosótis por cima dos intrincados lambris brancos ao longo das
paredes; que as paredes do meu banheiro particular eram recobertas pelo
mesmo papel; e que eles tinham comprado uma cama nova para mim –
uma cama com armação de quatro colunas e dossel de rendas, do tipo que
minha mãe sempre quisera me dar e dessa vez não pudera resistir, eu me
sentia culpada pela maneira como me havia comportado no carro.
Realmente me senti. Caminhando pelo quarto, eu dizia a mim mesma: tudo
bem, não é tão ruim assim. Por enquanto você está na boa. Talvez tudo dê
certo, talvez ninguém tenha sido infeliz nesta casa, talvez aquelas pessoas
todas que levaram tiros merecessem mesmo...
Até que me virei para a janela e vi que alguém já estava aboletado no
assento que o Andy fizera para mim com tanto carinho.
Era uma pessoa que não era minha parenta, nem de Soneca, Dunga ou
Mestre.
Voltei-me para o Andy, para ver se ele tinha notado a presença do
intruso. Mas ele não tinha, embora a pessoa estivesse bem ali, bem diante
do seu rosto.
Minha mãe também não a havia visto. Ela só estava vendo o meu rosto.
Desconfio que a minha expressão não devia ser das mais agradáveis, pois a
expressão da minha mãe mudou completamente, e ela disse, num suspiro:
- Ah, Suze, outra vez?!...

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