Capítulo 4

Jantar na casa dos Ackerman era igualzinho a jantar em qualquer outra
casa de família grande que eu conhe cia: todo mundo falava ao mesmo
tempo - menos, claro, Soneca, que só falava quando alguém lhe perguntava
alguma coisa - e ninguém queria tirar a mesa no fim. Programei meu
cérebro para telefonar no dia seguinte para a Gina e dizer que ela estava
errada. Eu não conseguia ver qual era a vantagem de ter irmãos: eles
comiam com a boca aberta e acabavam com todos os croquetes antes que
eu conseguisse chegar perto de um único.
Depois do jantar, resolvi que seria melhor não voltar para o quarto e deixar
bastante tempo para o Jesse decidir se ia cair fora com ou sem os dentes.
Não sou muito fã de violência, mas infelizmente é um dos ossos do ofício
no meu caso. Às vezes a única maneira de fazer alguém ouvir é com os
punhos. Reconheço que não é uma técnica recomendad a pelos manuais
usados pela maioria dos terapeutas para fazer seus diagnósticos.
Mas eu nunca disse mesmo que era uma terapeuta...


Meu plano só tinha um problema: era noite de sábado. Como todo o
estresse da mudança, eu tinha esquecido que dia era. Numa no ite de sábado
comum em Nova York, eu provavelmente teria saído com a Gina, tomado
o metrô para Greenwich Village para ir ao cinema ou simplesmente ficado
ali pela Joe's Pizza vendo gente passar. Posso ser uma garota de cidade
grande, mas isto não quer dize r que a minha vida lá fosse cheia de
glamour. Eu nunca fui convidada para sair com um garoto, fora aquele dia
na quinta série em que o Daniel Bogue me chamou para patinar no gelo
com ele enquanto tocava uma música só para casais no ringue do
Rockefeller Center.
E aí eu morri de vergonha ao cair de cara no gelo.
Mas a minha mãe não podia esperar a hora em que eu adentraria a ida
social de Carmel. Mal havia enchido o lava -louças, e ela começou:
- Brad, o que você vai fazer hoje à noite? Tem alguma festa ou co isa
assim? Quem sabe você levava a Suze e a apresentava às pessoas?
Dunga, que estava preparando um shake de proteínas - aparentemente, as
duas dúzias de camarões gigantes e o bife cavalar que ele comera no jantar
não eram suficientes - respondeu:
- É mesmo, quem sabe, se o Jake não fosse trabalhar hoje à noite...
Ouvindo seu nome, Soneca se sacudiu, enfiou a cara no relógio, soltou
uma praga, pegou a jaqueta e foi saindo.
Mestre olhou para o relógio e fez um "tsc, tsc":
- Atrasado de novo. Se não tomar cui dado, vai ser posto na rua.
Mas o Soneca tinha um emprego? Era novidade para mim, e eu perguntei:
- Onde ele trabalha?
- Na Peninsula Pizza.
Mestre estava fazendo alguma experiência esdrúxula com o cachorro e a
bicicleta ergométrica da minha mãe. O cachorr o, que era gigantesco - um
cruzamento de São Bernardo e urso, acho eu - estava pacientemente
sentado no chão enquanto Mestre prendia eletrodos em pequenas clareiras
que havia aberto em sua pele, raspando o pêlo. O mais estranho de tudo é
que ninguém parecia estar ligado, muito menos o cachorro.
- O Sone... quer dizer, o Jake está trabalhando em uma pizzaria?
Da cozinha, areando uma forma de bolo na pia, o Andy explicou:
- Ele faz as entregas. Volta para casa com um monte de gorjetas.
- Ele está economizando para comprar um Camaro - informou Dunga,
como um grosso bigode branco de shake.
- Ah... - disse eu.
- Se quiserem que eu os deixe em algum lugar, terei o maior prazer -
ofereceu-se Andy, generosamente. - E então Brad? Vai mostrar à Suze
como andam as coisas no shopping?
- Negativo - respondeu Dunga, limpando a boca com a manga do pulôver. -
O pessoal ainda não voltou do feriado em Tahoe. Talvez na semana que
vem.
Eu quase desmaiei de alívio. A palavra shopping invariavelmente me
enchia de horror, horror que não tinha nada a ver com os "desmortos". Em
Nova York não existem shoppings como os daqui, mas Gina adorava pegar
o trem para ir a Nova Jersey. Geralmente depois de uma hora eu ficava
como os sentidos completamente transtornados e tinha de me sentar para
tomar um chazinho de ervas até me acalmar.
E eu tenho de reconhecer que também não estava propriamente encantada
com a idéia de alguém me "deixar" em algum lugar. Minha nossa, que
havia de errado com aquele lugar? Dava para entender perfeitamente por
que não seria uma grande idéia implantar o metrô, considerando -se as
falhas geológicas que provocam terremotos, mas por que não tinham criado
um sistema decente de transporte urbano em ônibus?
- Eu sei - disse Dunga, largando seu copo vazio. - Vou pôr uns jogos de
Coolboarder para você, Suze.
Eu fiquei olhando para ele:
- Você o quê?
- Vou jogar Coolboarder com você - repetiu Dunga, logo perguntando,
diante da minha expressão, que continuava igualmente espantada: - Nunca
ouviu falar de Coolboarder? Ah, fala sér io...
Levantou-me então até a televisão. E logo ficou claro que Coolboarder era
um videogame. Cada jogador tinha umas pranchas de deslizar na neve, e
ficavam todos correndo uns atrás dos outros em montanhas nevadas,
usando uma alavanca para controlar a vel ocidade das pranchas e fazer os
movimentos mais incríveis.
Ganhei oito vezes do Dunga, até que finalmente ele disse:
- Chega disto, vamos ver um filme.
Percebendo que devia ter cometido um erro - provavelmente devia ter
deixado o pobre garoto vencer pelo m enos uma vez -, eu tentei melhorar a
situação oferecendo-me para fazer a pipoca, e fui para a cozinha.
Só então é que me veio aquela onda de cansaço. A defasagem entre Nova
York e a Califórnia é de três horas, e embora ainda fossem 9 horas da
noite, eu já me sentia como se fosse meia-noite. Andy e mamãe já se
haviam retirado para o grande quarto principal, mas deixaram a porta bem
aberta, provavelmente para ninguém pensar que estivessem fazendo algo
errado. Andy estava lendo um romance de espionagem e mamãe estava
vendo um filme de televisão.
Eu tinha certeza de que aquilo era pura encenação para a criançada; na
maioria das outras noites de sábado aposto que eles teriam saído com os
amigos de Andy ou os novos colegas de mamãe na estação de TV de
Monterey onde tinha sido encontrada. Era evidente que eles estavam
tentando criar uma situação doméstica em que nos sentíssemos seguros.
Mereciam palmadas por estarem dando o melhor de si.
Enquanto esperava que as pipocas estourassem, eu ficava me perguntando
o que meu pai diria de tudo aquilo. Ele não tinha ficado propriamente
entusiasmado com a idéia de mamãe voltar a se casar, muito embora Andy
seja um cara sensacional, como eu já disse. E ficaria ainda menos
entusiasmado com minha transferência para a Califórnia.
- Como é que eu vou me materializar para você quando estiver morando a
quase 5 mil quilômetros de distância? - perguntara ele quando eu lhe
contei.
- A questão, pai, é que você não tem que ficar aparecendo para mim -
respondi. - Você está morto, lembra? Tem de fazer o que as pessoas mortas
fazem, em vez de ficar espionando a mim e a mamãe.
Ele pareceu ficar meio magoado.
- Não estou espionando - disse. - Estou apenas dando uma olhada. Para
saber se você está feliz, essas coisas...
- Estou sim - garanti. - Estou muito feliz, e mamãe também.
Claro que eu estava mentindo. Não sobre a mamãe, mas sobre mim. Eu
tinha ficado com os nervos em frangalhos ante a perspectiva de me mudar.
Mesmo agora ainda não estava realmente certa de que a coisa ia funcionar.
Aquela situação com o Jesse.... Quer dizer: onde é que estava o meu pai, no
fim das contas? Por que não estava lá em cima dando um pontapé nos
fundilhos daquele cara? Afinal de contas, Jesse era um garoto, e estava no
meu quarto, e os pais supostamente detestam ess e tipo de coisa...
Mas é este o problema com os fantasmas. Eles nunca aparecem quando
você realmente precisa deles. Nem mesmo quando um deles é seu pai.
Acho que eu devo ter saído um pouco de órbita, pois quando vi, o
microondas estava apitando. Tirei a pi poca e abri o pacote. Já estava
jogando toda a pipoca numa grande gamela de madeira quando minha mãe
entrou na cozinha e acendeu a luz do alto.
- Oi, querida - disse ela, e depois olhou para mim. - Tudo bem com você,
Suzinha?
- Claro, mãe - respondi, levando um bocado de pipoca à boca. - O Dunga...
quer dizer, Brad e eu vamos ver um filme.
- Tem certeza? - insistiu ela, me olhando com curiosidade. - Tem certeza
que está tudo bem?
- Sim, estou bem. Só um pouco cansada.
Ela pareceu aliviada.
- Tudo bem então. Eu achava mesmo que você ia sentir o cansaço da
viagem. Mas... bem, é que você parecia tão estranha quando entrou pela
primeira vez no seu quarto. Sei que a cama de dossel foi um pouco
exagero, mas não consegui resistir.
Fiquei só mastigando. Já estava to talmente acostumada a esse tipo de
coisa.
- A cama é perfeita, mãe - disse então. - O quarto também é um barato.
- Estou tão contente - disse ela, afastando uma mecha de cabelo dos meus
olhos. - Fico tão contente que você tenha gostado, Suze.
Minha mãe parecia tão aliviada que de certa forma eu tive pena dela. Ela é
uma mulher legal e não merecia uma filha mediadora. Eu sei que ela
sempre se sentiu meio decepcionada comigo. Quando eu fiz 14 anos, ela
me deu uma linha telefônica própria, achando que tantos g arotos iam
passar a me telefonar que suas amigas nunca iam conseguir falar com ela.
Dá para imaginar como ficou decepcionada vendo que só a Gina telefonava
para a minha linha particular, e ainda assim em geral para me contar os
encontros que ela tinha. Como já disse, os garotos do meu bairro nunca se
interessaram muito em me convidar para sair.
Pobre mamãe. Ela sempre quis ter uma filha adolescente legal e normal.
Em vez disso, foi arranjar a mim.
- Amorzinho - disse ela -, não quer se trocar? Você está com essas roupas
desde seis horas da manhã, não está?
Ela fez esta pergunta no exato momento em que Mestre ia entrando para
pegar mais cola para seus eletrodos - embora eu não tivesse mesmo para
responder algo do tipo "bom, para dizer a verdade, mamãe, gostar ia mesmo
de me trocar, mas não fico animada com a idéia de fazê -lo em frente do
fantasma do caubói morto que está vivendo no meu quarto".
Em vez disso, eu dei de ombros e respondi, como quem não quer nada:
- Sim, claro, vou mudar de roupa daqui a pouquinho .
- Tem certeza de que não quer ajuda para desfazer as malas? Estou muito
sem graça... Eu devia...
- Não, não preciso de ajuda. Vou desfazer as malas daqui a pouquinho -
respondi, enquanto observava Mestre vasculhando uma gaveta. - Mas
agora vou indo. Não quero perder o início do filme.
Claro que no fim das contas acabei perdendo o início, o meio e o fim do
filme. Caí no sono no sofá e acordei um pouco depois das 11 com o Andy
sacudindo o meu ombro.
- De pé e direto para a cama, guria - disse ele. - Acho que vai ter de
confessar que não agüentou a parada. Não se preocupe. O Brad não vai
contar para ninguém.
Eu me levantei meio zonza, e fui para o meu quarto. Fui direto até a janela
e a escancarei. Para meu alívio, não havia nenhum Jesse no meu do
caminho. Isso aí! Posso dizer que ainda dou conta do recado.
Apanhei minha nécessaire e fui para o banheiro. Tomei uma chuveirada e
ali mesmo - só por garantia, pois não tinha certeza de que o Jesse entendera
o recado e havia mesmo desaparecido - botei o pijama. Quando saí do
banheiro, sentia-me um pouco despertada. Olhei ao redor, sentia -me um
pouco mais desperta. Olhei ao redor, sentindo a brisa fresca que entrava, o
ar salgado do litoral. Ao contrário do que acontecia no Brooklyn, onde
nossos ouvidos estavam sendo constantemente atacados por sirenes e
alarmes de carros, ali nas colinas era muito tranqüilo, e o único som de vez
em quando era o pio de uma coruja.
Para minha surpresa, eu via que estava sozinha. Sozinha de verdade. Zona
livre de fantasmas. Exatamente o que eu sempre quisera.
Caí na cama e bati palmas, para apagar as luzes. E me enfiei bem debaixo
dos lençóis novinhos, que ainda pareciam estalar.
Logo antes de cair no sono, achei que tinha ouvido alguma coisa além da
coruja. Parecia alguém cantando "Ó, Su zannah, não chores por mim, pois
eu vim lá do Alabama tocando o meu bandolim".
Mas era só minha imaginação, tenho certeza.

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