Capítulo 5

A Academia Católica Junipero Serra havia sido integrada ao sistema oficial
de ensino na década de 80, e para meu grande alívio desistira recentemente
da obrigatoriedade do uniforme. Os uniformes eram azul real e branco, que
não são exatamente as minha cores favoritas. Felizmente, os uniformes
eram tão impopulares que o colégio acabou desistindo deles, assim como
acabara aceitando meninas, e embora os alunos ainda não pudessem usar
jeans, podiam vestir praticamente tudo que quisessem.
O que me convinha perfeitamente, pois eu só estava interessada em usar
minha enorme coleção de roupas de grife, comprada em várias lojas de
Nova Jersey com a ajuda de Gina como consultora de moda.


Mas o lado católico é que ia ser um problema. Não exatamente um
problema, mais um transtorno. O negócio é que minha mãe nunca se
preocupou em me educar dentro de alguma religião específica. Meu pai era
judeu não-praticante e minha mãe, cristã. A religião nunca havia
desempenhado um papel importante na vida dos dois, e nem é preciso dizer
que só servira para me confundir. O que estou querendo dizer é que
qualquer um poderia imaginar que eu tivesse uma com preensão melhor da
religião do que qualquer outra pessoa, mas a verdade é que eu não tenho a
menor idéia do que acontece com os fantasmas que mando para onde
deveriam ir depois de morrer. Só sei que depois que os mando para lá, eles
não voltam. Nunca. Pont o final.
De modo que quando minha mãe e eu chegamos à administração do
Colégio da Missão na segunda -feira posterior à minha chegada à
ensolarada Califórnia, eu estava bastante incomodada com o enorme Jesus
crucificado por trás da escrivaninha da secretária .
E aliás eu havia sido prevenida. Na manhã de domingo, minha mãe
mostrara o colégio da janela, enquanto me ajudava a desfazer as malas.
- Está vendo aquela grande cúpula vermelha? - perguntou. - É a Missão. A
cúpula é da capela.
Mestre estava ali perto - eu já havia notado que ele fazia isto com
muita freqüência - e começou a fazer mais uma das suas descrições
detalhadas, desta vez sobre os franciscanos, membros de uma ordem
religiosa católica que seguia os ensinamentos de São Francisco,
oficializados em 1209. O padre Junipero Serra, um monge franciscano, era,
segundo Mestre, um personagem histórico tragicamente mal interpretado.
Herói polêmico da Igreja católica, a possibilidade de sua santificação
chegara a ser considerada em certa época, mas, segundo a explicação de
Mestre, os indígenas americanos contestaram a iniciativa, considerando -a
"uma forma de aprovação das táticas de exploração da colonização
espanhola. Embora se saiba que defendeu os direitos econômicos e de
propriedade dos indígenas americanos aculturados, Junipero Serra também
militou ativamente contra seus direitos de ter um governo próprio e apoiou
com intransigência os castigos corporais, recorrendo ao governo espanhol
pelo direito de açoitar indígenas".
Quando Mestre acabou sua palestra, e u olhei para ele e perguntei:
- Memória fotográfica, hein?
Ele ficou sem graça.
-Bom - respondeu. - É sempre bom reconhecer a história do lugar onde a
gente vive.
Arquivei aquilo na memória para o caso de necessidade no futuro. Mestre
podia ser a pessoa indicada caso Jesse voltasse a aparecer.
Naquele momento, de pé ali no frio escritório do prédio antigo que
Junipero Serra mandara construir para o progresso dos nativos da região,
eu estava me perguntando quantos fantasmas encontraria. Aquele tal de
Serra devia ter um monte de indígenas fulos com ele - especialmente
levando-se em conta a história dos castigos corporais - e eu não tinha a
menor dúvida de que ia encontrar todos eles.
Apesar disso, quando minha mãe e eu atravessamos o grande pórtico
frontal do colégio em direção ao pátio em torno do qual a Missão fora
construída, não vi uma única pessoa que parecesse estar no outro mundo.
Havia alguns turistas tirando fotos de uma palmeira - pois havia palmeiras
até no meu novo colégio -, um padre caminhando em atitude de silenciosa
contemplação pela ventilada galeria. Era um lugar bonito e tranqüilo,
especialmente considerando-se que se tratava de uma construção tão
antiga, pela qual já se deviam ter passado tantos mortos.
Eu não estava entendendo. Onde estavam os fantasmas?
Talvez eles tivessem medo de ficar por ali. Até eu estava meio assustada,
diante daquele crucifixo. Não que eu tenha alguma coisa contra a arte
religiosa, mas será que era mesmo necessário retratar a crucificação de
forma tão realista, com tantas feridas e tudo mais?
Aparentemente eu não era a única a pensar assim, pois um garoto que
estava fundado num sofá em frente ao lugar onde minha mãe e eu
havíamos sido instruídas a esperar percebeu que eu estava olhando naquela
direção e disse:
- Dizem que ele chora lágrimas de sangue quando alguma garota daqui se
forma ainda virgem.
Eu não consegui me impedir dar uma risadinha. Minha mãe fuzilou -me
com o olhar. A secretária, uma mulher rechonchuda de meia -idade com
ares de que uma coisa daquelas a ofen dia profundamente, limitou-se a
revirar os olhos e soltar, enfarada:
- Oh, Adam.
Adam, um garoto bonito mais ou menos da minha idade olhou para mim
com a cara mais séria:
- É verdade - disse, em tom grave. - Aconteceu no ano passado. Minha
irmã - e acrescentou, baixinho: - Ela é adotada.
Eu achei graça de novo, e minha mãe franziu a testa para mim. Na
véspera, ela passara a maior parte do dia me explicando que havia sido
muito, muito difícil mesmo convencer o colégio a me aceitar, sobretudo
porque ela não tinha um atestado de batismo meu para apresentar. No fim
das contas, eles só tinham concordado com a minha matrícula por causa do
Andy, pois os três filhos dele estudavam lá. Acho que um donativo bem
polpudo também contribuiu para eu ser aceita, mas minha m ãe nunca
falaria de uma coisa dessas. Ela só disse que era melhor eu me comportar
direito e não ficar jogando nada pelas janelas - embora eu insistisse com
ela em que aquele incidente não fora culpa minha. Eu estava lutando com
um jovem fantasma particularmente violento que se recusava a parar de
perseguir as garotas no vestiário da minha antiga escola. Atirando -o pela
janela, eu certamente conseguira que me ouvisse e que se decidisse a tomar
o bom caminho para todo o sempre.
Para minha mãe, claro, eu disse ra que estava praticando tênis no vestiário e
que a raquete escapulira da minha mão - uma história nada digna de
crédito, pois nunca foi encontrada nenhuma raquete.
Eu estava relembrando esse episódio nada agradável quando se abriu uma
pesada porta de madeira, entrou um padre e disse:
- Sra. Ackerman, que prazer vê -la de novo! Esta deve ser Suzannah Simon.
Queiram entrar, por favor.
Ele nos conduziu ao seu gabinete, deteve -se um momento e disse ao garoto
que estava no sofá:
- Mas já, McTavish? Logo no prime iro dia do semestre?...
Adam deu de ombros:
- Que posso dizer? A baranga me odeia.
- Por favor não chame irmã Ernestina de baranga, McTavish. Vou atendê -
los daqui a pouco, depois de conversar com estas senhoras.
Nós entramos, e o diretor, padre Dominic, co nversou um pouco
conosco, perguntando se eu estava gostando da Califórnia. Respondi que
estava gostando muito, especialmente do mar. Na véspera, nós havíamos
passado o dia quase todo na praia, depois que eu acabei de desfazer as
malas. Eu havia encontrado meus óculos escuros e, embora estivesse muito
frio para entrar na água e nadar, achei o máximo ficar simplesmente
estendida na areia observando as ondas. eram gigantescas, bem maiores
que em SOS Malibu, e Mestre passou a maior parte da tarde me explicando
o porquê. Já nem me lembro da explicação, pois estava tão zonza por causa
do sol que nem conseguia prestar atenção. Descobri que gostava da praia,
do seu cheiro, das algas que vinham dar na rebentação, da sensação da
areia fresca entre os dedos do pé, do g osto de sal na pele quando voltara
para casa. Carmel podia não ter um Bagel Bob's, mas Manhattan
certamente não tinha uma praia.
Padre Dominic manifestou o sincero desejo de que eu me desse bem com a
Academia da Missão e explicou que, embora eu não fosse c atólica, seria
bem-vinda na missa. Claro que havia dias santos obrigatórios nos quais os
alunos católicos tinham de deixar a aula para ir à Igreja. Eu poderia
acompanhá-los ou ficar sozinha na classe, conforme quisesse.
Achei aquilo meio engraçado, não sei bem por quê, mas consegui segurar o
riso. Padre Dominic era um homem velho, mas alerta, e me pareceu
alinhado com sua batina preta de gola branca - nada mau para um
sessentão. Ele tinha cabelos brancos e olhos muito azuis, além de unhas
muito bem tratadas. Não conheço muitos padres, mas achei que aquele
podia ser bem legal, sobretudo porque não pegara pesado com o garoto que
chamou a freira de baranga na secretaria.
Depois de falar de todas as infrações que podiam levar à expulsão do
colégio - matar muitas aulas, vender drogas no campus, o de sempre -,
padre Dominic quis saber se eu tinha alguma pergunta. Respondi que não.
Ele fez a mesma pergunta a minha mãe. Ela também não tinha. Padre
Dominic então levantou-se e disse:
- Muito bem. Vou me despedir da sen hora e levar Suzannah à sua primeira
aula. Está bem assim, Suzannah?
Achei meio estranho que o diretor, que provavelmente tinha muito que
fazer, estivesse se dando ao trabalho de me conduzir à minha primeira aula,
mas não disse nada. Simplesmente peguei me u casaco - uma capa de lã
negra da ESprit, très chic (minha mãe me deixaria usar couro no primeiro
dia no colégio) - e fiquei esperando enquanto ele e minha mãe se
despediam. Minha mãe se despediu de mim com um beijo e me lembrou de
ir ao encontro do Soneca às três horas, pois ele estava incumbido de me
levar para casa - só que ela não o chamou de Soneca, claro. Mais uma vez
a vergonha carência de transportes públicos significava que eu tinha de
ficar indo e vindo da escola em companhia de meus meio -irmãos.
Minha mãe foi embora e padre Dominic estava conduzindo pelo pátio
depois de dizer a Adam, olhando de soslaio para mim por trás do padre.
Não é todo dia que algum garoto da minha idade olha para mim de soslaio.
Fiquei desejando que ele estivesse na minha c lasse. Os sonhos da minha
mãe a respeito da minha social talvez pudessem finalmente realizar -se.
Enquanto caminhávamos, padre Dominic ia dando algumas explicações
sobre o prédio - ou sobre os prédios, melhor dizendo, pois eram muitos.
Várias construções de grossa parede de tijolo cru eram interligadas por
galerias de teto baixo, no meio das quais se encontrava o belo parque com
palmeiras, uma fonte borbulhante e uma estátua de bronze do padre Serra
com mulheres aos seus pés - o perfeito estereótipo das índi as pelesvermelhas
com seus bebês pendurados nas costas.
Do outro lado da galeria havia bancos de pedra, para que as pessoas
pudessem contemplar tranqüilamente a beleza do pátio, além das portas das
salas de aula e armários com cadeado embutidos na parede. Padre Dominic
explicou que um deles era meu e que ele trazia consigo o segredo para
abri-lo. Perguntou então se eu queria guardar o meu casaco.
Ao acordar na manhã de domingo, eu me surpreendera tremendo de frio na
cama. Tivera de sair com dificuldade de baixo das cobertas para fechar as
janelas. Vi então, com desânimo, que uma espessa névoa envolvia o vale,
impedindo que eu descortinasse a baía. Achei que com certeza alguma
terrível tempestade tropical se aproximava, mas Mestre me explicou com
toda paciência que aquela névoa matinal era comum na região noroeste e
que o Oceano Pacífico tinha este nome por sua relativa ausência de
tempestades. Mestre me garantiu que até meio -dia a névoa haveria de
dispersar-se, e que a tarde seria tão quente quanto na vésper a.
E ele tinha razão. Quando voltei da praia, bronzeada e feliz, meu quarto
virara um forno de novo e eu escancarei a janela - para descobrir ao
acordar hoje de manhã que tinha sido evidentemente fechada de novo, o
que me pareceu gracinha da parte da minha mãe, cuidar de mim assim.
Pelo menos eu esperava que tivesse sido minha mãe. Pois agora, pensando
bem no assunto... mas não, eu não voltara a ver Jesse desde o dia da minha
chegada. Definitivamente, minha mãe é que tinha fechado a janela do meu
quarto.
Seja como for, ao sair de casa para entrar no carro de minha mãe, vi que
estava fazendo frio de novo, e por isto é que estava usando minha capa de
lã.
Padre Dominic me informou que meu armário era o número 273 e
deixou que eu mesma o encontrasse, enquanto p asseava por ali com os
olhos nos caibros das galerias, onde, para sua alegria, famílias inteiras de
andorinhas se abrigavam todo ano. Ele parecia gostar muito de pássaros (e
na verdade de todo tipo de animais, pois uma das perguntas que me fez foi
saber como eu estava me dando com Max, o cachorro dos Ackerman) e
zombava abertamente toda vez que o Andy insistia em que a madeira das
galerias teria de ser substituída por causa das andorinhas e seus dejetos.
268, 269, 270 Estava percorrendo o corredor aberto, o lhando os números
nas portas bege dos armários. Ao contrário do que acontecia no meu
colégio no Brooklyn, ali os armários não estavam pichados, amassados ou
cheios de adesivos de bandas heavy metal. Parece que na Costa Oeste os
estudantes se preocupam mais com o aspecto de seu colégio.
271, 272. De repente, eu parei.
Em frente ao meu armário 273 havia um fantasma.
E não era Jesse. Era uma garota, vestida de forma muito parecida com a
minha, só que com cabelo louro comprido, em vez de castanho, como o
meu. E tinha no rosto uma expressão muito desagradável.
- Que está olhando? - perguntou-me, para em seguida dirigir -se a alguém
atrás de mim: - É isto que eles estão trazendo para o meu lugar?
Tenho de reconhecer que ao ouvir isto eu surtei. Mais que depressa de i
meia-volta e, quando vi, estava embasbacada diante de padre Dominic, que
apertava os olhinhos para mim com curiosidade.
-Ah - disse ele, ao ver minha expressão. - Era o que eu pensava.

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