Capítulo 3

Se eu dissesse que o cara ficou surpreso de ser interpelado daquela
maneira, estaria muito longe de dar idéia da reação dele. Ele não fi cou
apenas surpreso. Chegou até a olhar ao redor para ver se era com ele
mesmo que eu estava falando.
Mas é claro que a única coisa que havia atrás dele era a janela e, além dela,
aquela vista inacreditável da Baía de Carmel. De modo que acabou se
voltando para mim e deve ter visto que meu olhar estava grudado no seu
rosto, pois suspirou "Nombre de Dios" de um jeito que provavelmente faria
desmaiar a Gina, que tem um fraco por latinos.

- Não adianta invocar seus espíritos superiores - comuniquei-lhe,
arrastando a cadeira com bordados cor -de-rosa para minha nova
penteadeira e sentando-me nela, de frente para o encosto. - Se ainda não
notou, Ele não está prestando muita atenção em você. Caso contrário, não o
teria deixado por aqui apodrecendo todos estes anos. .. - e então dei uma
olhada mais firme nas suas roupas, que pareciam muito com algo saído do
velho oeste. - Quantos anos mesmo?... Uns cento e cinqüenta anos? Já
passou mesmo este tempo tudo desde que você bateu as botas?
Ele me olhou fixamente com seus ol hos negros e úmidos. E perguntou,
com uma voz rouca por falta de uso:
- Que quer dizer... bateu as botas?
Eu não pude deixar de revirar os olhos de impaciência. E traduzi:
- Esticou as canelas. Dobrou o Cabo da Boa Esperança. Foi desta pra
melhor.
Quando vi por sua expressão de perplexidade que ele continuava sem
entender, finalmente eu disse, algo inesperado:
- Morreu.
- Ah - fez ele. - Morri.
Mas em vez de responder a minha pergunta, ele balançou a cabeça.
- Não estou entendendo - disse, com ar de espanto. - Não entendo como
você consegue me ver. Durante todos esses anos, ninguém nunca...
- Claro - fui cortando, pois como você já deve estar sabendo estou cansada
de ouvir este tipo de coisa. - Olha só, os tempos mudaram um bocado,
sabia? Então, qual é a sua?
Ele piscou com aqueles enormes olhos negros. Suas pestanas eram
mais longas que as minhas. Não é sempre que eu dou de cara com um
fantasma que também é uma graça, mas aquele cara... caramba, ele devia
ter sido alguma coisa quando vivo, pois ali estava el e morto e eu já estava
querendo adivinhar como eram as coisas por baixo da camisa branca que
usava, bem aberta, mostrando um bocado o peito, e até um pouco do
abdômen. Será que fantasma também faz abdominal? Era o tipo da coisa
que eu nunca tivera oportunidade - ou vontade - de explorar até então.
Não que eu fosse me deixar perturbar por esse tipo de coisa àquela altura
dos acontecimentos. Afinal de contas, sou uma profissional.
- A minha? repetiu ele.
Até sua voz parecia liquefeita, com um inglês monótono e sem acentuação
como eu achava que era o meu, com aquele jeito de amortecer os "t" que a
gente tem no Brooklyn. Era evidente que ele tinha alguma coisa de
hispânico, como deixavam claro aquele "Nombre de Dios" que havia
soltado e a cor da sua pele, mas com certeza era tão americano quando
podia ser alguém que tivesse nascido antes de a Califórnia tornar -se um
estado.
É disse eu para limpar a garganta. Ele se voltara um pouco e apoiara
uma botina na almofada azul claro do assento da janela, e então eu pude ter
certeza de que os fantasmas realmente podem fazer abdominais. Seus
músculos abdominais eram muito definidos, e cobertos com uma leve
penugem de sedosos pêlos negros.
Eu engoli em seco. Bota seco nisso.
- Sim, a sua - disse então. - Qual é o problema? Por que ainda está aqui?
Ele olhou para mim, sem expressão no olhar, mas interessado. Eu fui mais
clara:
- Por que você ainda não foi para o outro lado?
Ele balançou a cabeça. Não sei se já disse que seu cabelo era curto e escuro
e parecia bem crespo, dando a impressão de que se você tocasse nele seria
muito áspero mesmo.
- Não sei o que você está querendo dizer.
Eu estava ficando com calor, mas já tinha tirado a jaqueta de couro, de
modo que não sabia o que fazer. Não podia tirar mais nada com ele ali me
olhando. O fato de eu ter percebido isto é que deve ter contribuído para que
de repente eu não me sentisse nada boazinha.
- Como assim não sabe o que eu estou querendo dizer? - rebati, afastando
uma mecha de cabelos dos olhos. - Você está morto. Não tem mais que
ficar aqui. Deveria estar em algum outro lugar fazendo alguma coisa que as
pessoas devem fazer depois que morrem. Cantando entre os anjinhos,
ardendo no inferno, reencarnando, subindo para algum outro plano da
consciência, ou o que seja. Você não devi a... estar simplesmente andando
por aí.
Ele ficou olhando para mim pensativo, equilibrando o cotovelo no joelho
levantado, com o braço meio vacilante.
- E se por acaso eu gostar exatamente de andar por aí? - quis saber.
Eu não tinha muita certeza, mas est ava com a impressão de que ele estava
zombando de mim. E eu não gosto nada que zombem de mim. Não gosto
mesmo. No Brooklyn, o pessoal costumava fazer isso toda hora - pelo
menos até eu descobrir que um punho bem fechado no nariz é capaz de
calar uma boca.
Eu ainda não estava em condições de dar um murro naquele cara -
ainda não. Mas faltava pouco. Simplesmente, eu tinha viajado um
quaquilão de quilômetros, num percurso que parecia ter tomado dias e dias,
para viver com um bando de garotos bobocas; ainda nem tinha desfeito as
malas; praticamente já tinha feito a minha mãe chorar; e de repente dou
com um fantasma no meu quarto... Alguém poderia me acusar de estar
sendo... digamos, injusta com ele?
- Olhe aqui - fui dizendo, levantando de um salto e passando a perna por
cima do encosto da cadeira. - Você pode ficar andando por aí o quanto
quiser, amigo. Vai fundo. Não estou dando a mínima. Mas aqui, não.
- Jesse - disse ele, sem se mexer.
- O quê?
- Você me chamou de amigo. Achei que gostaria de ficar sabendo qu e eu
tenho um nome. Eu me chamo Jesse.
Eu fiz que sim com a cabeça.
- Certo. Faz sentido. Muito bem então, Jesse. Você não pode ficar aqui,
Jesse.
-E você?
Jesse estava sorrindo para mim. Ele tinha um belo rosto. Uma cara boa. O
tipo de rosto que meu colégio antigo bastaria para ser eleito na hora o rei
do baile. O tipo de rosto que Gina recortava das revistas para colar na
parede do quarto.
Não que ele fosse bonitinho. Não era mesmo. O que ele parecia mesmo era
perigoso. E não era pouco, não.
- E eu o quê? - retruquei, sabendo que estava sendo rude, mas não dando a
mínima.
- Como se chama?
Eu olhei bem fixo para ele.
- Olha aqui. Vai dizendo logo o que você quer e cai fora. Estou com calor e
quero trocar de roupa. Não tenho tempo para...
Ele me interrompeu com perfeita amabilidade, como se não estivesse
ouvindo:
- Aquela mulher, sua mãe, chamou -a de Suzinha - disse ele, com os olhos
negros brilhando para mim. - É apelido de Susan?
- Suzannah - eu disse, corrigindo-o automaticamente. - Como naquela
canção, "Não chore por mim".
Ele sorriu:
- Eu conheço.
- Isso aí. Provavelmente estava entre as 40 mais tocadas no ano em que
você nasceu, certo?
Ele continuou sorrindo.
- Quer dizer então que este agora é seu quarto, Suzannah?
- Isso mesmo - respondi. - Isso aí, este agora é o meu quarto. De
modo que você vai ter que se mandar.
- Eu vou ter que me mandar? - fez ele, levantando uma sobrancelha. - Esta
aqui é minha casa há um século e meio. Por que eu teria de sair?
- Porque sim - e eu já estava ficando realmente muit o danada, em grande
parte porque estava com tanto calor, e queria abrir a janela, mas a janela
estava atrás dele, e eu não queria me aproximar tanto assim. - Este quarto é
meu. Não vou dividi-lo com um caubói morto.
Dessa vez ele entendeu direitinho. Levou o pé de volta ao piso, batendo
com força, e se endireitou. Imediatamente eu lamentei ter dito o que disse.
Ele era alto, bem mais alto que eu, e olhe que com minhas botas eu tenho
um metro e setenta e cinco.
- Não sou nenhum caubói - informou ele, zangado. E acrescentou alguma
coisa baixinho em espanhol, mas como eu sempre optara por Francês na
escola, não tinha a menor idéia do que ele estava dizendo. Ao mesmo
tempo, o espelho antigo pendurado sobre minha nova penteadeira começou
a balançar perigosamente no gancho que o prendia à parede. E eu sabia que
aquilo não se devia a nenhum terremoto californiano, mas à agitação do
fantasma que estava na minha frente, cujos poderes, obviamente, eram tipo
telecinético, aquele negócio de mover coisas com a mente.
É este o problema com os fantasmas: eles são tão suscetíveis! Ficam
alterados ao menor dos motivos.
- Uaaau! - fiz eu, esticando os braços para cima, com as palmas das mãos
voltadas para fora. - Menos! Calma aí, rapaz!
- Todos na minha família - enfureceu-se Jesse, com o dedo em riste no meu
rosto - trabalham feito escravos para conseguirem alguma coisa neste país,
mas nunca, nunca houve nela nenhum vaqueiro...
- Ei! - interrompi, e foi aí que cometi o meu maior erro; muito
irritada com aquele dedo na minha car a, eu o agarrei com toda força,
torcendo sua mão e puxando-o para mim para ter certeza de que ele ia me
ouvir dizer bem baixinho: - Pare com o espelho agorinha. E tira este dedo
do meu nariz. Se fizer de novo, será um dedo quebrado.
Empurrei sua mão para o lado e constatei com satisfação que o espelho
parara de balançar. Mas foi então que olhei para o seu rosto.
Fantasmas não têm sangue. E como poderiam ter? Pois se não estão
vivos... Mas posso jurar que naquele momento o rosto de Jesse ficou
completamente sem cor, como se cada gota de sangue que por acaso lá
estivesse tivesse se evaporado de uma hora para a outra.
Como não estão vivos nem têm sangue correndo nas veias, é claro
que os fantasmas também não são feitos de matéria. DE modo que não
fazia o menor sentido que eu tivesse conseguido agarrar o seu dedo. Minha
mão devia ter atravessado ele, certo?
Errado. É assim que acontece com a maioria das pessoas. Mas não com
pessoas como eu. Com os mediadores não é assim. Nós vemos fantasmas,
falamos com fantasmas e, se necessário, podemos perfeitamente dar um
pontapé no traseiro de um fantasma.
Mas eu não gosto de sair por aí dizendo isto para todo mundo. Sempre
tento o máximo possível não tocar neles - e aliás, não tocar em ninguém.
Quando falham todas as tentati vas de mediação e eu preciso recorrer a uma
certa dose de coerção física com um espírito recalcitrante, geralmente
prefiro que ele ou ela não fique sabendo antes da hora que eu sou capaz
disto. Os ataques inesperados são a melhor coisa quando estamos trata ndo
com integrantes do outro mundo, que, como todo mundo sabe, sempre
jogam sujo.
Olhando para o próprio dedo como se eu tivesse feito um buraco nele,
Jesse parecia completamente incapaz de dizer o que quer que fosse.
Provavelmente era a primeira vez em qu e ele era tocado por alguém em um
século e meio. O tipo de coisa que pode deixar um sujeito de cabeça zonza.
Sobretudo um sujeito morto.
Aproveitando que ele estava muito atarantado, eu disse, com a voz mais
firme e séria do mundo:
- Agora ouça bem, Jesse. Este quarto é meu, entendido? Você não pode
ficar aqui. Ou você me deixa ajudá -lo a ir para onde deve estar ou vai ter
de achar outra casa para assombrar. Sinto muito, mas é assim.
Jesse tirou os olhos do dedo, ainda com uma expressão de quem não está
absolutamente acreditando.
- Mas quem é você? - perguntou, suavemente. - Que tipo de... garota é
você?
Ele hesitou tanto tempo antes de conseguir dizer a palavra garota que
pareceu claro que não estava certo de que fosse a palavra adequada no meu
caso. Isto me deixou meio intrigada. Afinal, eu posso não ter sido a garota
mais popular da escola, mas ninguém nunca negou que eu fosse mesmo
uma garota. Caminhoneiros buzinam para mim vez ou outra e não é porque
querem que eu saia da frente. Peões de obra às vezes d izem coisas bem
pesadas quando eu passo, especialmente se estou usando minha minissaia
de couro. Eu não sou feiosa, nem de jeito nenhum masculinizada. É claro
que eu tinha acabado de ameaçar quebrar o dedo dele, mas vamos e
venhamos, isto não queria dizer que eu não fosse uma garota!
- Pois vou dizer-lhe que tipo de garota eu não sou - fui dizendo, danada da
vida. - O que eu não sou é o tipo de garota disposta a compartilhar o quarto
com um membro do sexo oposto. Deu para entender? De modo que ou
você se arranca ou eu vou botá-lo daqui para fora. Você decide. Vou lhe
dar algum tempo para pensar. Mas quando voltar aqui, Jesse, não quero vê -
lo mais.
Dei as costas e saí.
Não tinha outra saída. Geralmente eu não perco discussão com fantasmas,
mas tinha a impressão de que estava perdendo aquele, e feio. Eu não devia
ter sido tão ríspida com ele, nem deveria ter sido rude. Não sei o que me
deu, realmente não sei. É que...
Acho que simplesmente eu não esperava encontrar o fantasma de um cara
tão gracinha no meu quar to, só isso.
Meu Deus do céu, pensei enquanto descia as escadas, que vou fazer se ele
não for embora? Não vou poder nem trocar de roupa no meu próprio
quarto!
Dá um tempo pra ele, começou a dizer uma voz na minha cabeça. Uma voz
sobre a qual eu tomaria o maior cuidado de não dizer nada à terapeuta da
minha mãe.
Dá um tempo pra ele. Ele vai entender. Eles sempre entendem.
Bom, quase sempre.

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